Nos anos setenta havia uma coleção de cromos, daqueles que ainda não eram sequer autocolantes, chamada “O amor é…”, de que as raparigas (essa categoria cancelada pelo wokismo) gostavam. Cada cromo apresentava um atributo do que devia ser o amor. “Amor é levantar-me primeiro para lhe fazer o café”, por exemplo. As personagens eram um casal, uma variante urbana de Adão e Eva, já que frequentemente se apresentavam nuas, sem parra, de que aliás não tinham necessidade uma vez que, por estranha opção ética e estética, careciam de partes pudendas.

Também o Bloco de Esquerda, como tem “esquerda” no nome, faz há décadas um esforço sistemático para definir o que significa a palavra, numa senda orwelliana de manipulação da linguagem. “O teu lado esquerdo: justo, solidário, insubmisso”, dizia um cartaz de há meses, curiosamente com o lado direito de uma face, só esquerda para quem vê, que podia ser a de Catarina Martins ou qualquer outra, anódina, e sempre feminina, tanto quanto me apercebi, como se fosse esse o público-alvo, mais sensível a mensagens emotivas, assumindo o Bloco que, afinal, há homens e mulheres – menos mal.

O ideólogo Boaventura Sousa Santos, que caiu em desgraça pelos motivos errados, contribuiu amplamente para esse esforço de definição de linguagem, argumentando que ser de esquerda é lutar contra a desigualdade e a discriminação sociais (com o necessário “equilíbrio”, diz ele, entre igualdade e liberdade) e defender fortemente o pluralismo, a independência das instituições e a soberania nacional. “Ser de direita é ser contra todos ou a grande maioria destes objetivos”, acrescenta, no mesmo artigo do Público em que diz o resto.

Se é assim, como não ser de esquerda?

Daqui resulta que se eu, como Isabel Moreira, disser “Sou de esquerda”, nada mais tenho a acrescentar. “Ser de esquerda” é uma frase redentora e, por si só, um carimbo de qualidade.

A grande utilidade da manipulação da linguagem, da “novilíngua” orwelliana, é a de dispensar falar dos problemas concretos e da forma como podem ser resolvidos na prática, num processo de “tentativa e erro” para ver o que funciona e o que não funciona. Chama-se a isto “empirismo”, algo que que a extrema-esquerda não aprecia, já que o confronto com a realidade choca frequentemente com a ideologia.

Tudo fica mais simples se separarmos o mundo entre bons e maus.

Dizia Mariana Mortágua, quando assumiu a liderança do Bloco de Esquerda, que “vocês ainda não viram nada”. Pensei eu que, depois de mais de duas décadas de populismo, o Bloco pouco mais teria a mostrar.

Enganei-me.

O populismo do Bloco deu um passo em frente, com um discreto discurso de ódio. Durante dois milénios, os putativos culpados de todos os males foram os judeus. Agora a culpa é de um grupo mais nebuloso e dificilmente catalogável: “eles”. Cabe a cada um de nós deduzir quem são. Não é difícil.

“Não lhe dês descanso”, diz Mariana num cartaz atual. Em letras muito mais pequenas, que não se leem bem ao longe, Mariana esclarece que é “pela habitação”. A opção gráfica não é inocente: a referência à habitação é para disfarçar. O importante é referir que existe um bode expiatório para os nossos problemas.

Fiquei mais descansado. Mariana diz-me que, sejam quais forem os meus males, a culpa não é minha, não pode ser minha: é “deles”. Assim, é-me até legítimo “ir buscar o dinheiro onde ele está”. Dava-me jeito.


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