É irresistível não falar da crise política que estamos a atravessar no nosso país. Aliás reduzir este tema a uma mera crise política — que é exactamente aquilo que todos os agentes políticos, jornalísticos e do “comentariado nacional” têm estado a fazer — é um erro absoluto, pois isto é muito mais do que isso. Isto é já o culminar de uma crise de regime, em vésperas dos 50 anos do 25 de Abril de 1974, que se mostra em avançado estado de decadência e não se irá alterar sem mudanças constitucionais profundas em todos os edifícios da soberania do Estado, i.e., nas instituições democráticas do poder político e do poder judicial.

Mas vamos por partes.

No dia 7 de Novembro o país assistiu atónito à queda do Governo em virtude do pedido de demissão do Primeiro-Ministro (PM), prontamente aceite pelo Presidente da República (PR), que disso mesmo deu conhecimento aos portugueses, através de comunicado oficial, devidamente publicado no site da Presidência da República. E, note-se, estamos a falar da página oficial da Presidência da República e não da página pessoal do PR de uma qualquer rede social, como o “X” ou o “Facebook”. Não obstante, o Governo persiste intacto a governar como se, nos termos da Constituição da República Portuguesa (CRP), não estivesse já em gestão após aquela aceitação pelo PR do pedido de demissão do PM.

Seguidamente — após ouvidos os partidos políticos e consultado o Conselho de Estado — tivemos a decisão do Presidente da República que optou pela dissolução da Assembleia da República (AR) e pela marcação de novas eleições legislativas antecipadas para o próximo dia 10 de Março de 2024. Ou seja, os portugueses são chamados pela terceira vez em apenas quatro anos, para eleger uma nova configuração do Parlamento. Quer isto dizer que a instabilidade política e governativa que marcou o período pós-revolucionário de 1975 e que se manteve já depois de aprovada a CRP de 1976 até 1987, com Governos a cair uns atrás dos outros, com várias dissoluções ocorridas da AR e muitas eleições legislativas, regressou com toda a força a Portugal e, pelo que se percebe da evolução dos inúmeros estudos de opinião, assim se prevê manter nos próximos anos. De resto, nem mesmo uma maioria absoluta mono partidária foi capaz de conseguir manter uma legislatura até ao fim, o que constitui para o eleitorado mais um factor de descrédito e um renovado motivo para o afastamento dos eleitores das urnas e assim se consolidar o crescimento da abstenção, que julgo irá ser o maior de sempre.

Mas afinal por que razão e responsabilidade de quem é que temos este Governo em plenitude de funções, sem ter nenhumas condições para, sequer, governar uma mercearia?

Pois lamento dizê-lo mas a razão é uma obcecada ideia de o país precisar de aprovar já, nestas condições políticas, um Orçamento do Estado para 2024, que, ainda para mais, do ponto de vista constitucional levanta imensas dúvidas de legalidade e que, além disso, não será aplicado entre Janeiro e Março, após a publicação no Diário da República do respectivo decreto presidencial da dissolução da AR que então colocará “oficialmente” — na cabeça do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e de mais alguns constitucionalistas criativos — o Governo em gestão, mas que, na realidade, está já desde o dia 7 de Novembro. Bem como, o próximo Governo, necessariamente, irá proceder à sua rectificação, no limite, podendo modificá-lo na totalidade o que torna esdrúxula toda esta discussão orçamental.

Quanto à responsabilidade por esta situação criada que irá perdurar até dia 10 de Março, também lamento dizer ser, duplamente, do PR. Porquanto, não apenas ao ter feito esta coisa incrível de aceitar a demissão do PM mas entender que a mesma não é válida até publicar o decreto da dissolução da AR, numa interpretação esotérica do que prescreve a Constituição, que, além de ter contribuído para a sua criação, jurou cumprir e fazer cumprir, estendendo para lá do estritamente necessário o calendário eleitoral, isto por um lado. E, por outro, não ter feito aquilo que devia no momento certo, em que muitos dos seus concidadãos, eu incluído, esperavam do seu Presidente da República.

Refiro-me aquando daquela inapelável crise Galamba a que, há cerca de seis meses, todo o país assistiu e perfeitamente justificaria a demissão do Governo por iniciativa do PR, por ser então mais do que evidente que não estava assegurado o regular funcionamento das instituições democráticas, nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 2 da CRP, tendo-se acobardado perante um PM arrogante, prepotentemente detentor do poder absoluto. Ficou para a história a imagem de um Presidente a comer um gelado nas ruas de Belém enquanto o Primeiro-Ministro manteve o “abominável Galamba” — expressão feliz com que Vasco Pulido Valente um dia o apelidou numa das suas crónicas — no seu Governo ferido de morte, como se veio a comprovar.

No entanto, as coisas têm-se vindo a desenrolar a uma velocidade estonteante no que ao inquérito do Ministério Público (MP) diz respeito. Designadamente, através da típica má qualidade da investigação criminal levada a cabo por quem tem o “dominus” dessa fase processual penal que é, precisamente, o MP. E se a fraca qualidade processual dos muitos inquéritos é uma constante quando o MP é coadjuvado pela Polícia Judiciária (PJ), imagine o(a) caro(a) leitor(a) o que não será quando essa assistência coadjuvante cabe à PSP ou à GNR, cujos agentes dos seus respectivos departamentos criminais, naturalmente, não têm o perfil, nem o “know how” e nem a especialização dos agentes da PJ.

Ora, foi precisamente a PSP quem actuou conjuntamente com o MP nesta investigação. O que “per se” é merecedor das mais inquietantes dúvidas e preocupações. Seja como for, o que é facto é que o MP agiu mal, com erros crassos, e — diga-se o que se disser — não obteve da parte do Juiz de Instrução Criminal a concordância que anteriormente obtinha com outros magistrados que assinavam de cruz tudo o que o MP dizia, apresentava e pedia, indo até, não raras vezes, muito para além do Ministério Público na própria investigação que assumiam e nas decisões tomadas, por exemplo em matéria de medidas de coação. A isto acresce a duvidosa intervenção da Procuradora-Geral da República ao ter redigido, ela própria, o tal último parágrafo da comunicação do Ministério Público que o Primeiro-Ministro usou como argumento para a sua demissão.

Não me admiraria se daqui a umas semanas António Costa viesse a ser totalmente ilibado pelo Supremo Tribunal de Justiça, indo, pois, à sua vida — liberto do Governo de que estava manifestamente farto —, ainda muito a tempo de ir para a Europa como tinha planeado ou, caso haja algum revés, para Belém, dependendo apenas do grau de ilibação que a máquina de propaganda socialista tratará depois de difundir. Provavelmente ao mesmo tempo que decorrerá a campanha eleitoral de Fevereiro / Março. Deixando o caminho livre para o PS, com a nova liderança (quase certa) de Pedro Nuno Santos, aspirar um resultado eleitoral que não exclui a vitória.

Oxalá me engane, mas independentemente do desfecho desta crise com expiração anunciada, o país sairá sempre derrotado na sua credibilidade externa enquanto nação e Estado-membro da União Europeia, sendo absolutamente necessária uma refundação democrática da nossa República.


Publicado no Jornal O DIABO