O que aqui temos é simplesmente mais uma demonstração da forma como a coisa pública tem sido tratada nestes últimos 8 anos pelos titulares de cargos políticos e como esses mesmos protagonistas interpretam as suas competências.

Fez no passado dia 3 de Dezembro exactamente um mês após termos tido conhecimento de uma notícia divulgada pela TVI, segundo a qual, o Presidente da República teria exercido influência no acesso de duas bebés gémeas, de nacionalidade brasileira, a um tratamento à atrofia muscular espinhal realizado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, no final de 2019, cuja medicação prescrita terá custado quatro milhões de euros ao Estado português, conforme alegadamente confirmado por Daniela Martins — mãe das duas meninas — que mencionou, ainda, o auxílio de Nuno Rebelo de Sousa, filho de Marcelo Rebelo de Sousa, bem como terem as três cidadãs conseguido obter a naturalização portuguesa.

Durante um mês inteiro o tema foi falado nos bastidores, alvo das brincadeiras habituais nas redes sociais, não tendo, porém, sido aprofundado com a atenção e o rigor exigíveis, apenas porque outra tragédia, in casu a actual crise política, assumiu maior relevância, obtendo um impacto mediático que tem dominado todo este período. Todavia, a comunicação social tem vindo a dar nota dos respectivos desenvolvimentos.

Com efeito, logo no dia 3 de Novembro, o Presidente da República afirmou não ter exercido qualquer tipo de intervenção relativamente àquele caso concreto, sublinhando que se tivesse, assumiria-o e faria um pedido de desculpas. Garantindo, no entanto, não ter falado com o Primeiro-Ministro, nem com qualquer outro responsável do Governo e, porquanto, nada ter feito. Mas, nesta ocasião, quem tenha prestado atenção às palavras do Presidente da República, certamente registou o que, subsequentemente, referiu: “outra coisa diferente são laços que a família das gémeas possa ter com familiares do Presidente da República. Só há um Presidente, a família do Presidente não foi eleita, sempre disse isso”.

No dia seguinte, 4 de Novembro, Marcelo Rebelo de Sousa insistiu não ter interferido com nenhum tipo de influência naquela situação concreta, enfatizando não poder persistir qualquer suspeição sobre o mais alto magistrado da nação relativamente à mesma e que, muito embora não pretendesse avançar com processos judiciais contra jornalistas, não descartou essa possibilidade se, eventualmente, surgisse alguém afirmando ter falado consigo sobre este assunto.

Perante as afirmações do Presidente da República, no dia 5 de Novembro, o líder da Iniciativa Liberal Rui Rocha foi o primeiro responsável político-partidário a tomar uma posição sobre esta matéria, pedindo explicações públicas sobre o que se passou, desafiando o Primeiro-Ministro a esclarecer se o Governo tinha tido alguma intervenção relativamente às gémeas que vieram do Brasil e receberam aquele tratamento de 4 milhões de euros no Hospital de Santa Maria, em Lisboa.

Seguiram-se, em 6 de Novembro, o anúncio da abertura de um processo inspectivo, pela Inspeção-Geral das Actividades em Saúde, visando apurar todos os factos e inerentes responsabilidades e, em 8 de Novembro, o anúncio da decisão do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte em dar início a uma auditoria interna aos procedimentos realizados antes e durante o tratamento das duas meninas.

Entretanto rebentou a crise política — desencadeada pelos conhecidos eventos de cariz processual penal envolvendo membros do Governo, ditando a sua queda em resultado do pedido de demissão do Primeiro-Ministro, a dissolução do Parlamento e a consequente marcação de eleições legislativas antecipadas, por decisão do Presidente da República — cujo desfecho, por ora, não se arrisca aventar.

Em 22 de Novembro, a Iniciativa Liberal, novamente pela voz do seu líder Rui Rocha, afirmou ter aguardado desde o início daquele mês por mais informações acerca do estranho caso de favorecimento aparente de um tratamento hospitalar e medicamentoso, cujo valor ascende a 4 milhões de euros dos contribuintes portugueses. Tal não se tendo verificado, decidiu requerer a audição urgente da antiga Ministra da Saúde Marta Temido, bem como do seu antigo Secretário de Estado António Lacerda Sales e da antiga administração hospitalar em causa, a fim de prestarem todas as explicações à Assembleia da República.

No mesmo dia 22 de Novembro, Marta Temido fez saber que estaria disponível para prestar todos os esclarecimentos necessários a qualquer entidade que entenda requerê-los sobre este caso, nomeadamente a Assembleia da República, o Ministério Público, a Entidade Reguladora da Saúde, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde, ou qualquer outra que o solicite.

No dia seguinte, em 23 de Novembro, a TVI revelou que o pedido de acesso aos famigerados medicamentos para as duas gémeas terá, alegadamente, sido feito a um sábado e aprovado em apenas dois dias úteis. Mais referindo que as bebés tinham diagnóstico compatível com o medicamento em causa e que a consulta tinha sido marcada pelo então Secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales.

Em 24 de Novembro, a Procuradoria-Geral da República confirmou que o Ministério Público instaurou um inquérito, encontrando-se o processo em investigação no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa.

No dia 30 de Novembro, Marta Temido, em entrevista ao jornal “Público” e à “Rádio Renascença”, afirmou não ter havido, neste caso, qualquer contacto com o Presidente da República, garantindo ainda não ter dado nenhuma orientação para aquele tratamento.

Dia 4 de Dezembro, o Presidente da República, informou a comunicação social de que iria fazer uma comunicação e, para surpresa geral, chegado o momento, constatou-se que o tema da mesma era o caso do alegado favorecimento do tratamento das duas gémeas. No uso da palavra o Presidente Marcelo acabaria por, afinal, reconhecer que o seu filho, Nuno Rebelo de Sousa, a viver no Brasil, lhe tinha enviado um “e-mail” sobre aquele assunto. Afastando, porém, qualquer prioridade dada naquele caso concreto e revelando, ainda, que toda a correspondência em causa foi enviada — como habitualmente — para o gabinete do Primeiro-Ministro, António Costa, não tendo acompanhado o que posteriormente se sucedeu.

Ora, independentemente de quaisquer outras considerações que possamos fazer sobre este caso o que aqui temos é simplesmente mais uma demonstração da forma como a coisa pública tem sido tratada nestes últimos 8 anos pelos titulares de cargos políticos e como esses mesmos protagonistas interpretam as suas competências, dando ordens e autorizações a pedidos que verdadeiramente não o são e não existem, apenas por acharem que é isso que é pretendido, ou então como forma de bajular hierarquias.

Dito isto, o que aqui aconteceu é exactamente o mesmo que ocorreu com aquele patético pedido feito pelo então Secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Mendes, à CEO da TAP, pressionando-a a aceitar antecipar um dia um voo entre Maputo e Lisboa — apesar dos impactos financeiros de tal alteração — para conveniência da agenda do Presidente da República, argumentando que o Governo e a TAP não poderiam correr o risco de perder o apoio político do Presidente da República.

Seja lá como for, a justificação é injustificável.


Artigo publicado no Jornal O DIABO.