Sempre que menciono a actual maioria absoluta resultante das últimas eleições legislativas, de Janeiro de 2022, costumo qualificá-la pela sua dimensão percentual (41% dos votos válidos dos eleitores que efectivamente votaram no Partido Socialista). Essa referência que faço não é tanto no sentido de a menoscabar, mas antes de realçar o absurdo de termos, na Assembleia da República, uma representação parlamentar cada vez menos consentânea com aquilo que directamente resulta da vontade expressa pelos cidadãos em cada acto eleitoral e, pelo contrário, cada vez mais desfasada da realidade traduzida pelos votos contabilizados. O que, para além de desvirtuar de forma considerável a vontade democraticamente expressa pelo povo soberano, contribui, fortemente, para o seu progressivo afastamento e alheamento da decisão de escolha dos seus representantes e, consequentemente, através desses, de quem governa o país.

Com efeito, ninguém tem dúvidas de que as duas maiorias absolutas de Cavaco Silva nos idos anos 80 e 90 do século passado, foram, de facto, maiorias inequivocamente absolutas, pois foram-no em mandatos, i.e., deputados eleitos, tal como em votos expressos dos eleitores, ao contabilizarem mais de metade e num universo de mais de dois terços de votantes, a verdade é que, porém, essas duas maiorias absolutas indiscutíveis de votos traduziram-se no Parlamento em maiorias ainda mais significativas. Por exemplo, em 1991 (eram já 230 o total de deputados eleitos para a Assembleia da República em virtude da revisão constitucional de 1989), o PSD obteve 50,6% dos votos e 135 deputados a que equivalem 58,7%.

Mas se naqueles dois casos a quantidade de deputados eleitos acabou por obter pouca relevância ao ser secundarizada pela quantidade dos votos obtidos que ultrapassaram a fasquia clássica de “metade mais um”, a verdade é que todas as outras maiorias absolutas conseguidas foram-no apenas de mandatos no Parlamento e não de votos, uma vez que contabilizaram, todas elas, menos de 50%. Sendo, aliás, curioso verificar que o PS, em 2005 obteve 45% dos votos e 121 deputados (52,6%). Já em 2022 obteve 41% dos votos e 120 deputados (52,2%).

Vem esta conversa a propósito do nosso sistema eleitoral se encontrar, nos dias de hoje, manifestamente descalibrado e de essa desafinação, potenciar uma desproporção muito evidente entre votos obtidos e mandatos eleitos.

Designadamente tal ocorre por força da seguinte combinação triangular:

1 – Por um lado os atuais 22 círculos eleitorais resultantes da soma dos dezoito círculos distritais continentais, dos dois círculos regionais autónomos das ilhas atlânticas e dos dois círculos da emigração (europa e resto do mundo) e que elegem, cada um deles, uma quota parte – proporcionalmente determinada pelo número de cidadãos eleitores neles inscritos – dos 230 deputados que totalizam e compõem, na quantidade máxima, a Assembleia da República.

2 – Noutro lado, o sistema de representação proporcional, assegurado pelo método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos que, “in casu”, é aplicado no apuramento e distribuição dos mandatos que cada círculo eleitoral elege em função dos votos obtidos por cada partido político, o que nos casos dos círculos com menor número de eleitores, beneficia os partidos com maior votação e prejudica os que recebem menor quantidade de votos.

3 – No terceiro lado do triângulo, o desperdício de votos resultante da aplicação do método d’Hondt em cada um dos 22 círculos eleitorais, na medida em que, ao mesmo tempo que converte os votos em respectivos mandatos, estabelece os limiares mínimos de eleição e, consequentemente, sendo eliminados de consideração todos os votos que recaiam nas listas cuja percentagem no total seja inferior ao mínimo estabelecido.

Dito isto, a metodologia usada para o apuramento dos eleitos pode – diria mesmo deve – ser melhorada e afinada em função da evolução da realidade política do país, tendo como farol o aperfeiçoamento constante da nossa própria democracia representativa, processo dinâmico e sempre inacabado que deve, aliás, ser encarado como natural e imprescindível por contraponto à rigidez e ao imobilismo próprios de regimes pouco democráticos e de liberdades condicionadas.

E, a esse respeito, diga-se em abono da verdade, que nem sequer é preciso mexer na Lei Fundamental, uma vez que a mesma prevê já todos os mecanismos necessários a garantir essa qualidade democrática que o sistema eleitoral deve espelhar. Desde logo, remetendo o mesmo para a lei eleitoral e admitindo a possibilidade de criação e definição de círculos eleitorais geográficos, plurinominais e uninominais, bem como a respectiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional, como prescreve o artigo 149.º da CRP.

É, pois, por demais evidente que o sistema eleitoral português, no caso específico da Assembleia da República, não está minimamente ajustado à realidade sociológico-política do país, atirando literalmente para o caixote do lixo uma brutalidade de votos dos nossos concidadãos eleitores que se vêem cada vez menos representados, desiludidos e desmotivados para o exercício do mais elementar direito definidor de qualquer regime democrático como é o direito de votar. Direito esse que é também um dever de cidadania.

Pois bem, de que serve essa retórica quando, na prática, é o próprio regime que objectivamente impede que os votos de todas as pessoas realmente contem?

Só no último acto eleitoral foram 730 mil o número total de votos validamente expressos que a República, pura e simplesmente, ignorou. 730 mil votos que apenas serviram para engrossar estatisticamente resultados e percentagens, todavia sem directa correlação nos mandatos eleitos. Ou seja, 730 mil eleitores que, livremente e em consciência, votaram nos partidos em que queriam depositar a sua confiança, mas que, por força deste modelo exclusivamente assente em círculos plurinominais geograficamente delimitados, torna especialmente difícil a eleição de deputados por ser necessária uma quantidade mínima de votos muito elevada que, desproporcionadamente, beneficia os partidos mais votados e prejudica todos os outros.

Perniciosa circunstância promotora do chamado “voto útil” que, por definição, mais não é do que uma aberração democrática que, assumidamente, tem por objectivo levar o eleitor – em nome de uma pretensa utilidade alternativa – a votar em segundas e terceiras opções, traindo a sua genuína vontade de escolha por “inutilidade” superveniente do voto e que considero como uma manifestação de coação absolutamente intolerável.

Isto para além de promover uma profunda desigualdade entre o valor de cada voto e, por conseguinte, entre eleitores. Mas também se dirá o mesmo entre os próprios deputados eleitos – não individualmente considerados, uma vez que não temos círculos uninominais, mas agrupados por cada partido e respectivo círculo geográfico por onde foram eleitos –, i.e., pese embora a Constituição determine que os deputados são todos iguais e representam o país no seu todo e não os círculos por que são eleitos, quantos eleitores representam, de facto, cada um deles?

Evidentemente que um círculo de compensação nacional que eleja 40 dos 230 deputados, através do aproveitamento de todos os votos, como aquele que a Iniciativa Liberal propõe, contribuirá para resolver o problema inaceitável daqueles quase três quartos de milhão de votos desperdiçados e, assim, fortalecer a qualidade da nossa democracia.


Artigo publicado no Jornal O DIABO