“Álvaro Beleza defende quotas para jovens e limite de idade nas candidaturas a cargos políticos”, referia uma notícia do Observador de 1 de setembro. Um editorial do Público de 3 de setembro defendia a ideia com entusiasmo. Também a ex-Ministra da Justiça Francisca Van Dunen, numa entrevista há uns anos, defendeu quotas raciais no acesso a cargos públicos – assim mesmo, sem subterfúgios. Uma lei de agosto de 2017, inconstitucionalmente, quanto a mim, veio dar corpo a essa possibilidade.

Estas afirmações dão-me o pretexto de abordar de uma forma mais vasta a questão das quotas e a da sua admissibilidade, tanto ética como juridicamente. Primeiro a questão ética.

As quotas são discriminações, positivas para uns e negativas para outros. Para haver alguns que são beneficiados, em função da idade, da cor da pele ou do local de residência, outros são preteridos. É uma situação injusta, pelo menos na minha conceção de justiça, mas, sobretudo, ineficiente. Imaginemos o que seria a aplicação de quotas raciais no atletismo: na final de cem metros não estariam em competição os atletas mais rápidos, uma vez que alguns seriam excluídos por não terem a cor certa. Isto seria matar o atletismo.

A deputada única do PAN, Leonor Real, disse na Assembleia da República que num “mundo ideal” não haveria quotas. Seja o que for um “mundo ideal” para ela, sabemos pelo menos que esse mundo nunca existiu nem existirá. O que existe é um mundo possível, um mundo em que seja concedida igualdade de oportunidades, mas não igualdade de.

Quando as quotas são estabelecidas, dificilmente desaparecem, como se verifica com os contingentes dos Açores e da Madeira no acesso ao ensino superior público, para compensar os “custos de insularidade”: há cinquenta anos que alunos com melhores médias ficam de fora da universidade pública para dar lugar a alunos das ilhas. A ministra do Ensino Superior, Elvira Fortunato, disse há
uns meses que “não é o momento para reduzir [note-se: não “eliminar”, mas apenas “reduzir”] o contingente de acesso às universidades do continente para os alunos das regiões autónomas”. Nunca será “o momento”.

Uma sociedade só prospera se aproveitar devidamente os seus melhores. As quotas, pelo simples facto de serem equacionadas, favorecem a mediocridade. Por isso não há quotas em áreas altamente competitivas, como o futebol, que tanto agrada ao nosso primeiro-ministro, e é pena que não tenha aplicado o mesmo princípio ao seu Governo. O site do Governo anunciava orgulhosamente que este era primeiro em que existia paridade entre homens e mulheres. Aliás, havia mais uma mulher do que homens. Uma vacuidade, que tanto agrada à opinião pública. Por mim, o Governo pode ser todo de mulheres ou todo de homens. O que me interessa é a competência.

Uma boa imagem anti-quotas é a das audições que as grandes orquestras mundiais fazem aos músicos que as querem integrar: cada músico toca atrás de uma cortina, por forma a que não haja qualquer fator, para além da competência musical, a influenciar a escolha.

Agora a questão jurídica.

O documento mais “moderno” – no sentido de mais recente – que enuncia direitos humanos é a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, que foi aprovada já neste século e que, formalmente, tem o mesmo valor dos Tratados. É certo que a própria Carta refere que os Estados-membros são obrigados a cumpri-la apenas quando implementam direito da União, mas o que releva para o efeito é que são enunciados princípios gerais que devem pautar a ação dos Estados.

Refere o artigo 21o da Carta que é “proibida a discriminação em razão, designadamente, do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual”.

A novidade desta norma é a referência específica à idade. Como referi acima, a imposição de quotas implica sempre uma discriminação: favorece uns em detrimento de outros. A proposta de Beleza choca frontalmente contra este princípio de não discriminação.

A ideia de não discriminação é precisamente a de, idealmente, considerar determinados fatores irrelevantes na avaliação de pessoas que se candidatam a determinados cargos, como se as mesmas estivessem atrás de cortinas. As quotas são a negação deste princípio. Ao contrário do que se pretende com os instrumentos de direitos humanos, as quotas dão relevância expressa a características que deveriam idealmente ser irrelevantes, ou inúteis.

O direito da União admite uma única exceção à regra geral de não discriminação: “A fim de assegurar, na prática, a plena igualdade entre homens e mulheres na vida profissional, o princípio da igualdade de tratamento não obsta a que os Estados-Membros mantenham ou adotem medidas que prevejam regalias específicas destinadas a facilitar o exercício de uma atividade profissional pelas pessoas do sexo sub-representado, ou a prevenir ou compensar desvantagens na sua carreira profissional” (artigo 157.o do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia).

Fora deste caso, que, ainda assim, me levanta sérias reservas, não é admissível no direito Europeu qualquer tipo de discriminação. As minhas reservas prendem-se com o facto de o texto admitir que possa não haver igualdade de tratamento entre homens e mulheres para se atingir uma “plena igualdade” entre sexos. No entanto, quanto a mim, a existência de mais homens ou mulheres em determinada função deverá depender exclusivamente do campo de recrutamento existente em cada momento, ou seja, do número de homens e mulheres qualificados e disponíveis para exercer determinada atividade. Serei acusado de irrealismo. Dir-me-ão que as quotas são um mal necessário. Não me parece. Pelo contrário, a imposição forçada de uma paridade idealizada entre sexos independentemente do mercado de trabalho real – leia-se: independentemente da “oferta” de trabalho – resulta no afastamento à partida de pessoas hipoteticamente mais competentes. Veja-se o exemplo do atual Governo.”


Artigo publicado no Jornal O DIABO