Na semana passada, neste espaço de opinião, escrevi sobre o enfraquecimento da sociedade civil por via do sequestro do associativismo pelo poder político local, não restando uma única associação desportiva, recreativa e cultural financeiramente autónoma e, pelo contrário, todas elas dependentes dos orçamentos municipais e de freguesia. Bem como acerca da excessiva participação das autarquias no entretenimento de Verão nas cidades, vilas e aldeias de Portugal e da intromissão que essa circunstância, cada vez mais presente, provoca nos vários estabelecimentos comerciais privados nas áreas afectadas pelos palcos municipais e/ou de freguesia e respectivos artistas contratados a gosto dos autarcas responsáveis pelas pastas da cultura.

Desenvolvendo o tema, esta realidade atrapalha a vida de muitos restaurantes e bares que pura e simplesmente têm a sua própria música a tocar em som ambiente ou que antes contratavam músicos, bandas e DJ’s e que agora não o fazem, pelo menos com a mesma regularidade, por força desta interferência. O mesmo se diga desses profissionais contratados que têm agora menos oferta e portanto mais dificuldade de obterem rendimentos pelo seu trabalho e pela sua arte. Isto para já não falar das várias licenças que cada estabelecimento tem de pagar a um sem fim de entidades para difundir a música abafada pelo palco municipal e pela concorrência desleal das bancas de cerveja e de outras bebidas instaladas para dar “apoio” ao agora palco principal do largo, da avenida ou do passeio marítimo onde está instalado.

Até os outros festivais, igualmente organizados pela autarquia, nomeadamente os de cariz gastronómico que praticam um preço de bilhete de entrada e que, apesar de tudo, envolvem os restaurantes e comerciantes das zonas onde se realizam — muito embora com menor peso de participação destes em relação ao que ocorria no passado —, acabam por ser vítimas destas frenéticas agendas culturais veraneantes, i.e., pela introdução do nefasto elemento da “gratuitidade” que esses eventos encerram. Pois, se há festa de borla todas as semanas e quase todos os dias de Agosto, por que raio de razão se vai agora ter de pagar para entrar num festival gastronómico? Ou seja, em breve, por uma questão de “viabilidade” desses eventos, também eles serão de entrada livre, o que significa mais custos a suportar pelo orçamento…

São, de facto, muitas as situações em que se verifica a tal hegemonia autárquica na condução do entretenimento e animação de rua, cujos custos para os contribuintes — quem sustenta os orçamentos públicos locais, a meu ver, totalmente dispensáveis —, podendo e devendo tais verbas gastas em festa serem canalizadas para aquilo que realmente é necessário e faz falta em cada localidade. E tanto há por fazer em todo lado onde se pode gastar bem gasto o dinheiro dos contribuintes na melhoria efectiva da vida das pessoas.

Por exemplo melhorar as deficientes (e nalguns casos inexistentes) redes de transporte colectivo de passageiros, melhorar as instalações de centros de atendimento ao público dos vários serviços disponibilizados à população, renovar asfaltos das ruas e estradas cheias de buracos, adaptar a via pública às novas tipologias de transportes da designada mobilidade suave que, caso ainda não tenham percebido, veio mesmo para ficar, construindo onde é possível ciclovias. Pôr os passeios em condições, criar acessos pedonais desnivelados (túneis ou viadutos) em zonas de caminhos de ferro — ainda há pessoas neste país que, inaceitavelmente, morrem a atravessar linhas de comboio por falta destes acessos e equipamentos —, passadeiras devidamente pintadas e assinaladas em vez das aflitivas lombas que apenas servem para espatifar os automóveis dos cidadãos. Colocar semáforos em cruzamentos e entroncamentos e em rotundas com mais de quatro saídas para evitar acidentes ou remodelar os sistemas de iluminação pública poluentes introduzindo materiais modernos e sustentáveis no âmbito do conceito de “smart city”.

Enfim, um sem número de actuações que os munícipes e fregueses esperam dos seus autarcas bem mais importantes e necessárias para as suas vidas e negócios no dia-a-dia do que propriamente actuações contratadas para dar baile à população.

E então o que dizer das isenções que alguns municípios, como são os casos de Lisboa, Porto, Oeiras, certamente entre outros mais, que todos os anos fazem o mesmo número político de isentar casuisticamente taxas municipais aos promotores e organizadores dos grandes festivais musicais como o “Kalorama”, o “Primavera Sound” ou o “Alive” cujos valores envolvidos ascendem a muitas centenas de milhar de euros em cada um deles? Faz sentido isentar estes festivais? Se sim, por que razão não acabam com essas respectivas taxas? É que, sinceramente, não se consegue alcançar a razão de ciência que justifica a cobrança dessas taxas a A mas não a B. Porquê isentar C e não isentar D?

Para além de ficar sempre no ar uma perigosa ideia, talvez até injusta e errada, de favorecimento da câmara municipal a quem resolve isentar, levantando ainda suspeitas de outras situações que vão para lá do favorecimento, com milhares de bilhetes oferecidos pelos promotores ao município — por vezes não raras — em momentos antecedentes à votação destas isenções pelas correspondentes assembleias municipais. De modo idêntico “a contrario sensu”, fica também a sensação de que aqueles eventos que não se isentam de taxas não serão bem-vindos ao município, pondo aqui em causa o princípio fundamental da igualdade.

Mas pior, muito pior, do que esta possibilidade que é real e ocorre, é a decisão política de isentar grandes festivais mas não isentar pequenas festas de privados para 100, 200 ou 500 pessoas. Não. Esses pequenos produtores não têm direito a isenções de ordem alguma. Pagam e não pestanejam se querem realizar tais eventos. Só em Lisboa são centenas de casos reais que todos os anos ocorrem e que têm de pagar taxas que chegam às dezenas de milhar de euros e que chocam qualquer cidadão quando sabemos que no caso dos referidos festivais os valores são quase aos milhões.

Em suma, se o município está disposto a abdicar destes valores de taxas que deixa de cobrar aos festivais, é manifestamente uma opção política fazê-lo em relação a esses promotores de grandes eventos ou, em alternativa, fazê-lo relativamente aos pequenos promotores e proprietários de estabelecimentos que realizam pequenos eventos. O valor que deixa de cobrar é o mesmo. A diferença é que num caso é um único beneficiário e noutro são muitos beneficiários. No primeiro nem sequer se está, necessariamente, a beneficiar uma empresa do município, enquanto que no segundo está-se a beneficiar objectivamente muitas pequenas empresas do concelho.

Tudo é, pois, uma questão política. E os cidadãos deveriam estar bem esclarecidos quando são chamados a votar. Quando estiverem, tenho a certeza, a festa acabou!


Artigo original publicado no Jornal O DIABO