Esta semana proponho-vos uma reflexão relacionada com o tema do momento, que classifico como o acontecimento mais marcante das duas últimas décadas ocorrido em Portugal desde o Euro 2004. Refiro-me, evidentemente, às Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ).

E estou particularmente à vontade nos considerandos pela simples razão de que não tenho qualquer declaração de interesses a fazer quanto a paixões mais ou menos obsessivas e
fanáticas relativamente ao futebol que, no caso dos campeonatos europeus e mundiais das selecções promove, ainda, um nacionalismo travestido, nuns casos mais exacerbado,
noutros mais exótico, mas todos comungando do mesmo sentimento que atinge quase toda a gente, numa espécie de psicose colectiva interclassista.

Do mesmo modo, por ser um devoto agnóstico, nenhum interesse tenho a declarar sobre as JMJ, enquanto evento religioso da Igreja Católica, que contou com a participação do sumo
Pontífice, o Papa Francisco, e que terminou daquela forma absolutamente impressionante no novo Parque Tejo – Trancão, perante uma portentosa massa humana de um milhão e meio
de pessoas no sábado e no domingo, sem contar com toda aquela gente espalhada pelas ruas da cidade de Lisboa ao longo dos trajectos que levavam e traziam o Papa da Nunciatura de Lisboa aos locais e eventos que visitou e participou durante os cinco dias da sua histórica estadia.

Independentemente de quaisquer outras análises já feitas quanto à questão económica do investimento realizado e do “retorno” expectável, bem como assim todo o escrutínio
democrático político, jornalístico ou cívico a efectuar em momento oportuno e com todo o detalhe ao retorno efectivo, sabemos de antemão que, obviamente, todas as contas a ser
apresentadas irão demonstrar, desse ponto de vista, mais um desastre completo da gestão pública lusitana.

Todo o dinheiro gasto na organização da JMJ, com a construção do Parque Tejo-Trancão e do famoso palco que — por motivos técnicos, qualquer pessoa informada sabe — não terá
utilidade para eventos musicais futuros, uma vez que para esse efeito os palcos querem-se não no topo mas sim na base da colina, numa lógica de anfiteatro, ou com as compras de
outros equipamentos e a aquisição de serviços necessários para a realização do evento, foi incomparavelmente superior ao que a economia colheu dos seus participantes. À
semelhança, mais uma vez, do que ocorreu com o Euro 2004 e os faraónicos dez estádios de futebol construídos. Alguns deles de absoluta inutilidade superveniente como disso
provam os casos do Algarve, Aveiro, Coimbra e Leiria, cuja utilização nos últimos vinte anos tem sido residual, para não dizer nula, inclusive tendo alguns deles estado já em situação
pré-devoluta.

A esse respeito convém, talvez, recordar o quão ruinosa foi a construção desses quatro estádios e o que a sua manutenção custa ao erário público, i.e., sustentado pelo dinheiro
dos contribuintes, o que nunca é demais lembrar, designadamente para as contas públicas dos respectivos municípios (Faro e Loulé no caso do Algarve). De resto, daquela dezena de
novos estádios, apenas dois (Dragão, no Porto e Luz, em Lisboa) estão integralmente pagos. Sendo oito as câmaras municipais que continuam a pagar dívidas relativas a sete estádios. Juntando-se assim aos já mencionados cinco, os municípios de Braga, Guimarães e Porto. O estádio de Alvalade ainda não está pago, mas a dívida não é da Câmara Municipal de Lisboa (CML).

Dito isto, no plano do evento em si mesmo considerado, i.e., não avaliando a sua viabilidade económica, só com muito má vontade e muita desonestidade intelectual se poderá dizer que correu mal. Não, não correu mal. Correu muito bem. Foi um verdadeiro sucesso. E isso deveu-se a quem trabalhou efectivamente para que esse sucesso fosse uma realidade.
Desde logo a Igreja Católica Portuguesa e as Câmaras Municipais de Lisboa e de Loures, tendo sido notório por todos os que foram acompanhando a evolução dos trabalhos que
estiveram praticamente sozinhas sem nenhum apoio do Governo durante quase todo este ano de 2023.

Voltando às JMJ, o Governo tudo fez para que as coisas não tivessem corrido da melhor forma, para com isso tentar tirar partido eleitoral em Lisboa, cavalgando um certo mal-estar
da população residente em relação aos constrangimentos provocados pelo evento. Foi bem visível a birra gratuita do coordenador José Sá Fernandes com o presidente da CML Carlos
Moedas, apresentando todos os planos à última da hora numa estratégia de irritação popular, julgando com isso que as pessoas culpassem o executivo da capital… Saiu-lhes, porém, o tiro pela culatra!

Já relativamente às críticas que fomos ouvindo e lendo sobre o Papa Francisco, sinceramente também não consigo compreender as que vêm da esquerda, precisamente quando este Papa é, como sabemos, oriundo dessa corrente filosófica. E menos ainda acompanho as críticas, muitas delas deselegantes, que vêm da direita mais radical que gostavam mais do anterior papado de Bento XVI e que me fizeram lembrar a minha infância. Muito embora seja agnóstico, como referi no início, recebi uma educação familiar cristã, alicerçada nos valores e na doutrina da Igreja que esteve fortemente presente na minha formação e que incluiu o baptismo (único sacramento a que fui submetido não tendo, porém, memória do mesmo), a catequese conducente à primeira comunhão, a profissão de fé, também designada por comunhão solene, com passagem pela função de acólito entre ambas e, com isto, ter ficado mais perto daquilo que verdadeiramente me fascinava e me fazia ir com gosto à missa aos domingos de manhã: a música. Nomeadamente o som do órgão “Hammond” que o padre da paróquia de Pechão, no Algarve, conseguiu comprar, com dificuldade, para que eu pudesse tocar na missa e assim tornar-me organista. Um padre simples, homem modesto que andava de bicicleta entre as suas três afastadas paróquias. Um homem bom de seu nome Alberto que, para além das qualidades humanas descritas, tinha uma capacidade de mobilização extraordinária. Principalmente junto dos jovens.

Em sua substituição, veio um outro padre que eu também conhecia das aulas de religião e moral nos 5.º e 6.º anos de escolaridade, nos idos anos de 1985 a 1987, em que o pároco e
professor dessa disciplina opcional na escola D. Afonso III, em Faro, notoriamente tinha ficado em “estado novo”, fazendo questão de vincar a sua profunda oposição ao regime
democrático, vigente há uma década, obrigando-nos a levantar, sob pena de repressão e má avaliação, quando sua iminência entrava na sala de aula. Escusado será dizer que as suas
missas lá em Pechão deixaram de ter jovens e muitos adultos…

Lembro-me bem da amplitude de contraste com todos os outros professores e, principalmente, com o padre Alberto e, dessa circunstância me ter ensinado que aquilo era
tudo o que eu não queria experienciar. Não tive a oportunidade de lhe agradecer, genuinamente, o inestimável contributo, teórico e, sobretudo, prático que me fez compreender o que era a ditadura e o que era a democracia.

Excerto publicado no Jornal O DIABO