Neste curso da Academia Observador, ministrado por António Carrapatoso, tem sido feita uma excelente e muito criteriosa descrição dos principais impedimentos que dificultam as muitas reformas necessárias e urgentes na nossa sociedade e economia. Mas eu destacaria um dos que julgo ser dos mais determinantes para explicar a letargia reformista em que Portugal está mergulhado.

 

Creio que uma das principais razões desse imobilismo quanto a reformas, se não o mais importante, é o jorro de dinheiro proveniente da Europa central e do Norte que até agora tem fluído generosa e acriticamente para Portugal. Esses países, que receiam qualquer tipo de agitação social no sul da Europa mediterrânica, ao distribuírem esses subsídios alimentam o populismo governamental e anestesiam a necessidade de mudanças estruturais, constituindo-se como verdadeiros obstáculos externos às reformas do status quo. Mesmo as reformas induzidas pela Tróica, como a Reforma Cristas sobre o arrendamento habitacional, têm vindo a ser limitadas nos seus efeitos mais eficazes.

Em Portugal, as estruturas sociais, económicas e políticas pouco têm evoluído e têm-se acomodado ao imobilismo prevalecente. Financiamentos comunitários são, em grande parte, esbanjados a nível pessoal e/ou de grupos de interesse que os usam em seu proveito próprio. Os recentes escândalos na administração e nas empresas públicas ou dependentes do Estado apenas demonstram que uma boa parte desses fundos não tem sido utilizada para modernizar a máquina, mas antes para encher os bolsos de alguns, que agem individualmente ou a favor de determinadas corporações de interesses sociais e políticos. A TAP é um exemplo bem recente da utilização de dinheiros comunitários desbaratados que apenas se destinam a eternizar a gestão duma corporação extremamente poderosa – os gestores público-políticos.

A maior parte dos portugueses são pessoas pacíficas, trabalhadoras, mas bastante acomodadas e prezam acima de tudo a sua estabilidade pessoal, mesmo que usufruam dum nível de vida bastante básico. “Mais vale manter o pouco que tenho do que arriscar ir para pior”. Só quando a sua segurança pessoal e material se deteriora significativamente é que estão disponíveis para arriscar alterações nas suas opções governativas e rotinas diárias e até fazer sensíveis sacrifícios pessoais. No Estado Novo trocaram-se bolsos bastante vazios pela paz que passou a reinar nas ruas.

 
 

No entanto este modelo bastante passivo e conservador aproxima-se do seu esgotamento, pois o contributo das cobranças fiscais já está muito limitado pelos elevados níveis de fiscalidade atingidos e a rarefação dos apoios externos é previsível e inevitável. Por um lado, os contribuintes nacionais, que suportam a maior parte das receitas fiscais cobradas, dificilmente suportariam eleitoralmente um contínuo aumento dos seus impostos. Por outro lado, os fundos comunitários vão-se ressentindo da inflação/recessão, da guerra na Ucrânia, dos custos da pandemia, da variação dos custos energéticos, da sustentabilidade ambiental, do Brexit e de outros fatores que penalizam os rendimentos públicos entre os países contribuintes líquidos da Comunidade Europeia.

Apesar de os fundos destinados a Portugal serem reduzidos e proporcionais à dimensão do país, o que preocupa verdadeiramente esses países são as gigantescas verbas financeiras necessárias para socorrer as economias italiana e espanhola. A tendência é para reduzir apoios através do corte de verbas e/ou dificultando o acesso, com regulamentos cada vez mais exigentes e altamente fiscalizados.

O apoio à Ucrânia será sensivelmente idêntico aos programas de apoio comunitários – 750 mil milhões de euros – e duplicar esse valor não será tarefa fácil de acomodar. E a redução ou estabilização do peso da dívida pública portuguesa não vai permitir a existência de défices orçamentais, dificultando a necessária liquidez para a comparticipação nacional dos financiamentos comunitários. Daí o desejo de Portugal transformar os empréstimos em apoios a fundo perdido. Os fundos comunitários vão deixar de ser a panaceia para alimentar o populismo esbanjador que ficará cada vez mais condicionado para responder financeiramente aos inúmeros apoios pessoais e empresariais que o governo tem anunciado.

Perante o El Dourado financeiro propagandeado pelo Governo para as classes mais vulneráveis economicamente e até para a própria classe média, é natural o desejo de melhorarem rapidamente a sua situação material perante as já esperadas e inevitáveis restrições financeiras. É a explicação mais plausível para a onda de greves a que estamos a assistir.

 

Face a estas limitações, vamos ter de alterar comportamentos e, ou aceitamos um empobrecimento progressivo e generalizado que nos poderá levar a perigosas e preocupantes opções políticas autoritárias e antidemocráticas, ou enveredamos por um caminho de verdadeiras reformas estruturais que exigirão muitos sacrifícios, mas que permitirão abrir novas perspetivas.

A situação económica e social vai deslizando e corre-se o risco de se agravar mesmo para os que beneficiam e assistem passivamente ao atual bloqueio reformista. Perante o previsível insucesso da ineficaz estatização em curso, com estafados e perniciosos percursos já experimentados e falhados, os cidadãos vão exigir uma liberalização regulada que lhes dê perspetivas mais animadoras dum progresso económico-social consentâneo com os seus desejos. Profundas reformas liberalizantes nos campos da saúde, ensino, trabalhohabitação e justiça são indispensáveis à concretização duma vida melhor e com mais liberdade.

Não se sabe quando se iniciará esse processo, mas quando o cabaz de compras começar seriamente a reduzir-se e os alarmes finalmente tocarem, a situação estará “politicamente amadurecida” para as mudanças necessárias, dolorosas e inadiáveis, porque as sociedades não se suicidam.

 

Autor: Artur Pais
Data: 2 de Março de 2023
Publicação: Observador

Artigo original em https://observador.pt/opiniao/as-sociedades-nao-se-suicidam/