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Um texto que não deveria precisar de ser escrito

Opinião de Armando Gonçalves Pereira no Observador
No centro de Luanda há uma estátua colossal da Rainha Njinga, que viveu entre os séculos  XVI e XVII, e é celebrada como um símbolo da luta pela liberdade e contra o imperialismo  português.

Njinga era rainha dos Mbundus. O seu pai tinha assumido o poder em 1592 e fora  assassinado por conspiradores. O seu filho e sucessor, Ngola Mbande, massacrou vários  familiares e ordenou a esterilização das suas irmãs, Njinga incluída.

Njinga envenenou o irmão em 1624. Assumiu o trono e assassinou o seu sobrinho de sete  anos, filho de Ngola Mbande, para evitar a concorrência .

O Marquês de Sade, em Philosophie dans le Boudouir, caracterizou-a como “a mais  cruel das mulheres”, uma rainha que matava os amantes assim que se fartava deles e,  “para satisfazer a sua alma feroz, se divertia fazendo esmagar num almofariz mulheres  que engravidassem antes dos trinta anos.” (Esta e as seguintes são traduções minhas.)

Njinga conquistou o reino vizinho dos Matamba. Para melhor combater os portugueses, associou-se aos holandeses. Depois da derrota destes, celebrou com os portugueses um  acordo de paz, por forma a manter-se rainha do Ndongo. Converteu-se ao cristianismo.  Destruiu os ícones religiosos dos Mbundus, renunciou aos sacrifícios humanos, e iniciou  ou um programa vigoroso de construção de igrejas. Estas e outras histórias conta Linda  Heywood num livro de 2012, Njinga of Angola: Africa’s Warrior Queen.

A história mais popularizada de Njinga relata o episódio em que, durante um encontro  com um governador português, se recusou a sentar-se no chão para não ficar num nível  inferior ao do seu interlocutor, tendo ordenado então a um escravo que se colocasse com  as mãos e os joelhos no chão por forma a poder sentar-se nas suas costas.

O episódio é recordado para realçar a não submissão de Njinga ao “colonizador” – entre  aspas porque a expansão colonial europeia em África só viria a iniciar-se no final do  século XIX –, mas faz notar também que a rainha era proprietária de escravos. Era  também traficante. A África subsaariana dos séculos XVI e XVII era notavelmente similar à Europa feudal, com modelos económicos análogos, obrigações feudais e classes  sociais, incluindo servidão e escravatura. Quando os portugueses chegaram em 1575,  encontraram um mercado de escravos solidamente implantado e altamente lucrativo.

Nada de extraordinário. A escravatura é tão velha como a humanidade. Está presente nas  sociedades mais antigas que nos deixaram vestígios escritos, em especial no Oriente  Próximo dos milénios II e I a. C., do Egito faraónico à Mesopotâmia. O código babilónico de Hammurabi, redigido cerca de 1750 a.C., detalha os direitos dos proprietários de  escravos. No Antigo Testamento conta-se que os povos vencidos eram regularmente  escravizados, e que os pais vendiam os filhos para a escravatura, em especial quando não  podiam pagar dívidas.

Thomas Piketty, que não pode propriamente ser acusado de “reacionário”, explica-nos  em Capital et idéologie (2019) que “[e]ntre os séculos XV e XIX, observamos também  numerosos exemplos de sociedades esclavagistas fora do quadro ocidental,  nomeadamente no Reino de Congo (entre Angola, Gabão e o Congo atual), no Califado  de Sokoto (no norte da Nigéria) e no Reino de Ache (na ilha de Sumatra, atual Indonésia),  em que os escravos, consoante os casos representam entre 20% e 50% da população.”

John Coleman de Graft-Johnson relata na Enciclopédia Britânica a peregrinação do rei  do Mali a Meca em 1324, “que chamou a atenção do mundo pela riqueza do seu império.  Viajando a partir da capital Niani na parte superior do rio Niger, atravessado as atuais  Mauritânia e Argélia antes de chegar ao Cairo, Mūsā foi acompanhado por uma  impressionante caravana de 60.000 homens, incluindo um séquito de 12.000 escravos  pessoais, todos vestidos com brocado de seda persa. O próprio imperador, que seguia a  cavalo, era diretamente precedido por 600 escravos com adornos de ouro. A sua bagagem  pessoal era transportada em 60 camelos, cada um deles carregando 300 libras de ouro.”

Esta digressão histórica, talvez algo longa para uma crónica de jornal, serve apenas para  recordar que a escravatura foi praticada universalmente e foi aceite até recentemente como se de uma lei da natureza se tratasse. Aliás, os escravos libertos, se tivessem posses,  compravam escravos para si próprios, sem qualquer preconceito ético, como acontecia ainda nos EUA do século XIX – daí a antiga e crua máxima norte-americana de que “o  maior desejo de um escravo não é ser livre; é ter escravos.”

Apenas na Inglaterra do final do século XVIII se começou seriamente a teorizar a  censurabilidade moral da escravatura, da ideia de que um ser humano podia ser  proprietário de outro. É certo que tinha havido vozes anteriores, como a de Bartolomé de  las Casas, a colocar em causa a prática, mas faziam-no geralmente em relação a casos  concretos, como os dos índios sul-americanos. Mas devemos aos ingleses o maior esforço  efetivo da abolição da escravatura a um nível global: em 1787 foi criada a Society for the  Abolition of Slave Trade, e, em 1807, a Câmara dos Comuns aprovou legislação para a  abolição do trafico.

O tráfico de escravos da África subsaariana para o Magreb durou mais de mil e trezentos  anos, muito mais do que o tráfico transatlântico, que durou cerca de século e meio. O  explorador Livingstone na segunda metade século XIX narrava ver ainda ao longe, sobre  as dunas do deserto, longas caravanas de homens agrilhoados pelo pescoço a caminhar  para o norte de África, onde seriam vendidos. Chamou-lhes a “ferida aberta do mundo”,  como nos recorda Thomas Pakenham em The Scramble for Africa (1991).

A escravatura teve todas as cores. Aliás, em inglês, o termo para “escravo” (“slave”) é  próximo da palavra para “eslavo” (“slav”, que por sua vez deriva do latim “sclavus”), já  que estes foram frequentemente capturados para a escravidão desde os tempos do Império  Romano do Ocidente até à Baixa Idade Média.

A visão maniqueísta da escravatura, assente na dicotomia negro-escravo e  branco-proprietário, é, como procurei ilustrar com os exemplos anteriores,  profundamente redutora e parcial. É uma visão Ocidental moderna, infundida pela experiência do tráfico para as Américas, que a influência cultural norte-americano, de que  E Tudo o Vento Levou é um bom exemplo, ajudou a propagar.

Uma nota final: as ideias de reparações sobre atos de um passado mais ou menos distante,  assim como os pedidos de desculpa, assentam em regra num misto de ignorância e  ingenuidade, para além de serem uma manifestação de insuportável sobranceria, nossa  sobre os antigos, como se tivéssemos atingido a perfeição moral absoluta e no futuro não  pudéssemos ser também julgados pelo que fazemos hoje e que reputamos aceitável.

O investigador Rob Henderson defende que estas posições têm origem na necessidade de  as elites, em especial as universitárias, terem uma sensação de superioridade moral sobre  as “classes inferiores”, de obterem um estatuto social em troca de pouco esforço – já que  os bens de luxo já não são suficientemente distintivos, as elites precisam de “crenças de luxo”. Foi nesta armadilha que caiu Marcelo Rebelo de Sousa.

Publicado no Observador
Um texto que não deveria precisar de ser escrito
Armando Gonçalves Pereira 7 de maio de 2024
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