Ventura e o Chega podem continuar a alimentar-se da sua própria narrativa, mas é preciso lembrar que o debate político é de todos, e que os problemas do país não têm dono.
É curioso como a política portuguesa, volta e meia nos oferece pérolas de comicidade involuntária. Uma dessas pérolas cintilantes, a brilhar no panorama nacional, atende pelo nome de André Ventura. O líder do Chega, partido que se autoproclama a “última linha de defesa contra o sistema corrupto”, parece ter desenvolvido um peculiar sentido de propriedade sobre o debate público — afinal, quem mais seria capaz de pensar que certos temas lhe pertencem exclusivamente a ele?
Atualmente, com o PSD a tentar “arrumar a casa” sob a liderança de Luís Montenegro, assistimos a um esforço para recuperar a força de outrora. Para tal, o PSD não hesita em tocar em assuntos delicados e politicamente carregados, como a imigração, a segurança pública, a justiça ou a imigração, temas que, goste-se ou não, sempre exigiram respostas claras e medidas assertivas. Respostas essas que a esquerda raramente conseguiu dar.
O único partido a quem Montenegro não conseguirá “roubar” o discurso é à Iniciativa Liberal, pois para os Liberais nenhuma reforma será suficiente pois não trará a verdadeira reforma do Estado. O PSD oferece uma versão diluída e pouco inspirada das políticas liberais talvez porque, no fundo, Montenegro ainda não entendeu que não basta falar de impostos — é preciso querer realmente mudá-los. Os Liberais, porém, não são sequer relevantes neste momento.
O PSD tem quatro missões: “dar tudo a toda a gente”, regular a imigração, manter as contas do Estado certas e melhorar os serviços públicos. Só assim consegue “roubar” temas tanto à esquerda como à direita e ambicionar uma maioria governativa.
Mas, eis que surge Ventura, agitando o seu dedo acusador e lançando-se ao palco com uma afirmação quase comovente: “Esses temas são meus!”. Acreditar que há algum monopólio sobre preocupações nacionais é, sem dúvida, um salto quântico de arrogância. Ventura, num desvio retórico que faria corar qualquer demagogo de tempos passados, parece querer reclamar uma patente sobre os males e desafios do país. No seu imaginário, as crises sociais vêm todas com uma etiqueta do Chega, e só este os pode salvar.
Mas, caro leitor, de uma coisa estou certo: a história repete-se. Até no ridículo.
Não é a primeira vez que a política europeia vê figuras populistas tentarem apropriar-se de preocupações sociais legítimas para alimentar as suas ambições. Aliás, já vimos este filme demasiadas vezes. Nos anos 30, em plena crise económica, vários líderes europeus apresentaram-se como os únicos “salvadores” dos problemas que, curiosamente, afetavam o mundo inteiro. Criavam inimigos convenientes, simplificavam as soluções, e convenciam as massas de que eram os únicos com as respostas. Soa familiar?
O truque é antigo: não é preciso resolver nada. Basta convencer o povo de que se é a personificação da solução. Ventura pode não ser Mussolini, mas tem o seu gosto pelo palco e pela fanfarra política. De facto, ecos passados.
O que é tragicómico é que Ventura acha que ninguém mais, nem sequer o PSD, tem a “legitimidade” para discutir temas como imigração ou segurança. Considera-se o guardião de uma verdade única, como se o partido tivesse feito um pacto sagrado com o destino nacional. Tudo o que fuja do seu estreito universo ideológico passa a ser uma cópia barata.
Ao que tudo indica, o Chega tem vindo a ganhar representatividade na política portuguesa no papel de personagem ruidosa e inconsequente. É relativamente fácil fazer muito barulho quando se tem pouco a perder e tudo a provar. Ventura, promete mundos e fundos, mas não explica como vai transformar a indignação em soluções concretas. Está sempre pronto para apontar o dedo, mas nunca para estender a mão. Quando outros partidos tentam abordar os mesmos temas —temas que pertencem a todos os portugueses, infelizmente — Ventura fica ofendido, como se lhe estivessem a roubar o brinquedo favorito.
Claro que, enquanto o PSD vai tentando limpar a casa e revendo as suas prioridades, o Chega continua na sua missão de afirmar-se como “a voz do povo”. Mas de que povo, afinal? De todos aqueles que preferem slogans a políticas concretas? Dos indignados que acham que Portugal se muda amanhã? De quem acha que gritar mais alto é o mesmo que ter razão? Ou de quem, tal como os populistas de outrora, acredita que o mundo se divide entre heróis e vilões, e que, por sorte ou destino, Ventura nasceu para ser o herói?
Ventura e o Chega podem continuar a alimentar-se da sua própria narrativa, mas é preciso lembrar que o debate político é de todos, e que os problemas do país não têm dono. Pertencem a todos os partidos, a todas as ideologias e, sobretudo, a todos os portugueses. Se hoje o PSD decide abordar questões como imigração ou criminalidade, tal não é uma usurpação — é um sinal de que os problemas são sérios o suficiente para serem discutidos.
No fundo, André Ventura pode continuar a achar que os temas são “seus”. Pode continuar a encenar a sua comédia política e a ter cheias as caixas de comentários de todos os artigos que não se alinhem com a visão do Chega ou que o ousem desafiar. No teatro que é a política, eventualmente os portugueses vão perceber que a diferença entre um líder e um pregador reside na capacidade de fazer algo mais do que simplesmente falar.