À hora a que escrevo esta crónica (madrugada de quarta-feira, dia 27 de Março), deveria estar já concluída a instalação da nova composição da Assembleia da República, nesta 16.ª Legislatura Constitucional, bem como eleitos o seu Presidente, vice-presidentes, secretários e demais elementos da mesa.
Nos termos regimentais, de entre os 230 deputados eleitos, foi escolhido para presidir interinamente aos trabalhos — neste primeiro acto parlamentar — o deputado do Partido Comunista Português António Filipe, por reunir os requisitos necessários, nomeadamente em virtude de ser o deputado eleito nesta nova legislatura que mais tempo tem acumulado da respectiva função no Parlamento português.
Quer isto dizer que deveriam estar concluídos os trabalhos subsequentes à instalação da Assembleia da República e já devidamente eleito o novo Presidente? Pois deveriam mas a verdade é que não estão!
Ou seja, não está resolvida esta situação porque como, aliás, decorreu dos resultados das últimas eleições legislativas, no dia seguinte (11 de Março), começou o Período Revolucionário Em Curso do ano da graça de 2024 — talvez em homenagem às comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974 — que nos trouxe até este lindíssimo momento em que pudemos testemunhar um autêntico auto-cerco interior à Assembleia da República, levado a cabo por dois grupos parlamentares totalmente irresponsáveis e apostados em colocar Portugal a arder e que, para mais, totalizam uma maioria absoluta de 128 deputados. Designadamente o Partido Socialista e o Chega, que resolveram bloquear a eleição do deputado José Pedro Aguiar Branco para Presidente da Assembleia da República.
Foi — como se constatou — um dia bonito de assistir. Um privilégio maravilhoso na nossa consolidada democracia representativa que se julgava liberal e pluralista. Um dia político mais do que histórico, absolutamente histérico. Um dia inesquecível de tribuna e esfregona, com deputados e senhoras da limpeza a trabalharem ao mesmo tempo, numa sessão interminável, em directo nas TV’s, ambos a fazerem horas extraordinárias, quer para a limpeza do regime, quer da sua casa, respectivamente. Um marco de inestimável qualidade oratória e comovente retórica “pulhítica”. Uma demonstração notável de incapacidade, de desfaçatez não menos apreciável e de desconfiança assegurada nesta instituição democrática que é a Assembleia da República.
Enfim, um dia para-lamentar que me fez imediatamente transportar para aqueles tempos áureos do primeiro PREC de 1975, quando o país, reconhecidamente, era um “manicómio em auto-gestão”, com o cerco à constituinte e ao VI Governo provisório, liderado por esse enorme personagem que era o Primeiro-Ministro Pinheiro de Azevedo, que à saída da audiência com o rouco Presidente da Junta de Salvação Nacional e, por inerência, Presidente da República, General Costa Gomes, imortalizava perante as câmaras da RTP: «vim dizer ao PR que estou farto de brincadeiras. Brincadeiras hã... Fui sequestrado. Duas vezes. Não gosto de ser sequestrado. É uma coisa que me chateia pá…».
Neste PREC de 2024, estamos mais numa fase em que Portugal se tornou um grande circo amador, de entrada livre, e cujo primeiro espetáculo da temporada atraiu mais de um milhão e cem mil populares que adquiriram os bilhetes para a tão aguardada estreia. Terão, porventura, ficado boquiabertos perante a performance incrível do grande palhaço temperamental, até agora inofensivo mas com promissora evolução comportamental.
O que aconteceu neste primeiro dia do resto da vida da auspiciosa 16.ª legislatura constitucional foi a consagração da santa aliança pascal, também conhecida como CNCS – Coligação Nacional Chega Socialista. De resto em vigor desde 2019, com o inestimável contributo de Eduardo Ferro Rodrigues e, muito especialmente, a partir de 2022, com a preciosa e incalculável ajuda do “malhador da direita" Augusto Santos Silva que acabou politicamente por não ser eleito nestas últimas eleições legislativas do passado dia 10.
O lamentável Dr. Ventura mostrou em 24 horas quem é na realidade e até onde está disposto a ir para atingir o seu “El dourado”. Escrúpulos, ética, moral, bons costumes e pessoas de bem são apenas palavras ditas tantas vezes quantas as necessidades que cada momento assim obriga. Momento que pode variar radicalmente no mesmo dia.
O Chega bem poderia adoptar como hino as “Quatro Estações”, de Vivaldi. Bem sei que isso é pura e simplesmente impossível, não tanto pela multi polaridade que caracteriza a massa cinzenta generalizada daquilo, mas antes pelo que a música invoca, adequando-se na perfeição à psique instável e demente do “querido líder”, pese embora para a maioiria dos deputados: hino haja só um, o nacioinal e mais nenhum.
Mas o PS não ficou melhor na fotografia. Primeiro não avançou com nenhum nome para candidatar a Presidente da Assembleia da República. Depois de se ter juntado ao Chega no voto em branco (não no Aguiar) — o mesmo é votar contra, uma vez que a eleição do PAR é por maioria absoluta de 116 deputados —, resolveu apresentar um candidato próprio a Presidente da Assembleia da República, in casu, Francisco Assis que venceu duas votações (primeira e segunda volta). Todavia, sem ter atingido os 116 votos dos deputados necessários. Quer isto dizer que o PS introduziu mais um elemento de perturbação na engrenagem, certamente para facilitar a vida a quem venceu as eleições...
Não sabendo e, sobretudo, não arriscando uma qualquer saída — ainda que meramente imediata — sobre o tema da eleição do próximo Presidente da Assembleia da República, o que ontem fizeram PS e Chega foi relegar o país e os portugueses para as calendas. Tudo em nome de uma tática político-partidária até hoje nunca vista, até agora nunca antes sentida, até aos nossos dias presentes nunca tentada.
Sem qualquer pudor nem vergonha na cara, estes 128 deputados irresponsáveis e inimputáveis que não viabilizaram Aguiar Branco como PAR, são integralmente provenientes dos Grupos Parlamentares do PS e Chega, gozando com os portugueses e de uma maioria absolutamente destrutiva no actual quadro parlamentar.
Dito isto, em vez de o PSD insistir no seu candidato a Presidente da Assembleia da República, deveria, isso sim, desistir e deixar a maioria da Coligação Nacional Chega Socialista resolver o assunto. Nem que fiquem ali 6 meses a tentar todos os dias…
Como diria o citado Pinheiro de Azevedo: O povo é sereno, é apenas fumaça!
Manuel J. Guerreiro
27 de março de 2024