E entretanto já temos em plenitude de funções o novo Governo de Luís Montenegro. Tendo a cerimónia de tomada de posse sido um bom momento de afirmação política. Não apenas pelo discurso proferido pelo Primeiro-Ministro, mas em particular pelo que disse o Presidente da República. Como é seu timbre um discurso curto mas com fortes mensagens políticas para consumo não só do Governo acabado de empossar, mas também das diferentes oposições que, na passada semana, tiveram a sua própria tomada de posse com a instalação da Assembleia da República e início da nova legislatura.
Com efeito, o Presidente Marcelo lembrou aos portugueses eleitores que a nova configuração parlamentar resultou da sua livre escolha e inequívoca vontade, traduzindo-se num voto de fé na própria democracia. Desde logo por ter sido um voto que inverteu de forma notória a tendência da abstenção em crescendo imparável — algo, aliás, que foi devidamente assinalado não apenas pelo Presidente como por toda a classe política nacional — entendendo esse facto como um generoso contributo dos cidadãos para a comemoração dos 50 anos do 25 de Abril.
Marcelo Rebelo de Sousa quis ainda deixar bem vincado, no seu discurso, que o novo Primeiro-Ministro assume as respectivas funções por ter encabeçado a candidatura que obteve o maior número de votos dos portugueses que, daquela forma e com aqueles resultados, quiseram que substituísse “quem liderou o mais longo Governo neste século e o segundo mais longo em democracia” — o que de resto corresponde à verdade —, lançando, porém, naquele momento solene, de forma absolutamente inusitada, a mais do que evidente candidatura de António Costa ao cargo de Presidente do Conselho Europeu.
Não obstante as circunstâncias políticas, designadamente a nova configuração (mais fragmentada) do Parlamento, ditada pela decisão soberana dos portugueses nas eleições legislativas de 10 de Março e que não deixou de sublinhar no seu discurso presidencial, fazendo notar as esperadas dificuldades com que o Governo se irá debater ao longo do mandato, ao não contar com o apoio maioritário na Assembleia da República. Mas deixando bem explícito que “o Governo contará com o apoio solidário e cooperante do Presidente da República”, apontando o caminho para a construção de convergências mais prováveis em questões de regime. Ou seja, em matérias de política externa, de defesa e financeira de repercussão internacional, tal como em relação aos compromissos eleitorais assumidos.
Sendo certo, contudo, que noutras áreas haverá espaço para convergências menos prováveis, que aconselham um diálogo mais exigente. Como sejam as decisões relativas a reformas estruturais ou mesmo em relação aos Orçamentos do Estado que irão requerer uma redobrada exigência negocial entre Governo e Assembleia da República.
Considero que este foi um excelente discurso do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. De forma muito objectiva, em apenas 10 minutos, traçou o diagnóstico da situação política actual e o que se espera do Governo minoritário de Luís Montenegro perante este circunstancialismo político interno, mas também externo. Nomeadamente no quadro da actual incerteza quanto à estabilidade da paz na Europa e no mundo, em que as guerras estão cada vez mais presentes e o envolvimento da Nato e da própria União Europeia começa a estar em cima da mesa como uma séria possibilidade real.
Dito isto, a aparente instabilidade com que o Governo contaria, à partida, no apoio político da Assembleia da República à sua acção executiva, i.e., da maioria esmagadora, embora extremamente heterogénea, dos 150 deputados distribuídos pelos sete diferentes partidos da oposição (Chega, Iniciativa Liberal, PAN, PS, Livre, PCP e BE), em virtude de outras circunstâncias não calculadas nem tidas em consideração na normal disputa democrática interna — mesmo perante este quadro adverso de uma maioria muitíssimo minoritária de apenas 80 deputados do PSD/CDS — aliada a uma postura dialogante com que, inevitavelmente, o Governo e os partidos que o apoiam terão de saber executar, é possível que a coisa se prolongue no tempo e até mesmo, quem sabe, o Governo consiga a proeza de chegar ao fim desta legislatura.
Como é consabido, tal possibilidade não seria inédita. António Guterres conseguiu governar em minoria durante uma legislatura inteira. Era líder da oposição precisamente o actual Presidente da República. É certo que eram outros tempos, outros personagens políticos, outra dimensão da própria maioria relativa de que dispunha o partido que suportava o Governo no Parlamento, in casu, o PS com 112 deputados, e, especialmente, as circunstâncias de hoje, com mais pluralismo democrático quer à esquerda quer à direita do hemiciclo são, evidentemente, outras e absolutamente incomparáveis. No entanto, face a todas as outras condicionantes já elencadas, principalmente, de índole externa, é bem possível que o Governo mais minoritário de sempre possa mesmo concluir o mandato que agora iniciou.
Por outra banda, não se poderá olvidar que a situação concreta de cada um dos dois maiores partidos da oposição, acabam por ser duas outras variantes na equação em causa. Na medida em que, o Governo só terminará o seu mandato antes do termo da legislatura se for derrubado através da aprovação de uma moção de censura pela maioria absoluta dos deputados da Assembleia da República, para tanto apresentada por um dos respectivos partidos da oposição.
Para que uma tal hipotética moção de censura possa ser coroada com sucesso, isto é, ser aprovada pela maioria dos deputados dos partidos políticos com assento parlamentar, independentemente do partido que a apresenta, terá, necessariamente, de contar com os votos favoráveis do PS e do Chega. Sobre esse assunto não restam quaisquer dúvidas. Pois, por um lado os votos do PS e dos restantes partidos da esquerda não são suficientes para aprovar tal censura e, por maioria de razão — que neste caso significa menor número de deputados —, o Chega não possui igualmente dessa prerrogativa, mesmo que fosse acompanhado no voto favorável à queda do Executivo pelos partidos da extrema esquerda, o que seria perfeitamente plausível.
Pelo que, como está bem de ver, a queda do Governo da AD implicará sempre uma aliança entre os partidos de Pedro Nuno Santos e de André Ventura.
Naturalmente que esse não é um cenário impossível. Nem tampouco improvável. Basta lembrarmo-nos o que aconteceu na passada semana com a eleição do Presidente da Assembleia da República para concluirmos que foi exactamente o que veio a suceder na primeira tentativa falhada de eleger José Pedro Aguiar Branco, sem que existissem outros candidatos ao cargo em questão.
De todo o modo existe um problema inultrapassável: incompatibilidade de timings para derrubar o Governo. Para um seria imediatamente. Para outro mais lá para o meio da legislatura. Assim sendo, bem que o Governo poderá surpreender.
Manuel J. Guerreiro
3 de abril de 2024