Este texto é para a minha mãe. Vocês podem lê-lo, mas ele foi escrito especialmente para ela. Porquê, perguntam vocês? É que a minha mãe, na sua inocência, perguntava-me no outro dia o que é que eu faria se fosse primeiro-ministro de Portugal e eu explicava-lhe, da melhor maneira que conseguia, que por si só um primeiro-ministro faz muito pouco. Que o sistema está perro em mais do que um sítio. Que as pessoas dependem do sistema. E que as mentalidades não se mudam por decreto.
Mas a minha mãe ripostava que nem toda a gente é assim, que tenho de ter esperança e que se as pessoas certas pegassem no país – o facto de ela acreditar que eu poderia ser uma delas só demonstra que é minha mãe – certamente alguma coisa poderia ser feita. Eu duvidei, a discussão ficou por ali e fomos às nossas vidas.
O que é que isto tem a ver com farmácias? Por um acaso do destino tenho uma empresa que vende produtos do sector têxtil, sobretudo on-line. No entanto esses produtos prestam-se por vários motivos a serem vendidos em farmácia – são-no por exemplo na Suécia – e portanto pareceu-nos uma avenida de crescimento viável entrar nesse canal. Vai daí decidi abraçar o desafio e falar com dois proprietários de farmácias há algum tempo atrás. Sabemos da existência de grupos de compras, mas por serem os nossos primeiros passos optámos por começar em ponto pequeno e ver como corria.
Ambos me desencorajaram.
A Ana (nome fictício), amiga de longa data da minha mãe, teve a amabilidade de gastar alguns minutos a explicar-me que teria todo o gosto em trabalhar connosco, mas que havia um problema: o Infarmed. “O Infarmed regula tudo aquilo que eu posso vender em farmácia”, disse-me a Ana. “Tenho colegas que já foram multados por venderem almofadas. Quero vender barras de vitaminas e outros produtos assim mais novos como esses suplementos, mas não posso”. E por tudo isto só poderíamos avançar se eu tivesse um parecer positivo do Infarmed atestando que ela não iria ser multada por vender os nossos cobertores. O Ricardo (nome fictício) foi mais longe: “só compro produtos a empresas com CAEs da área da saúde. Não quero problemas”.
Ambos exprimiam o mesmo problema: medo da regulação, medo do regulador e, na dúvida, preferência por não correr riscos (a propósito da excessiva carga de regulação e burocracia em Portugal e dos seus malefícios económicos poderão ler mais neste artigo do Álvaro Matias aqui recentemente publicado).
A verdade é que a história podia acabar aqui, mas como não me dou por vencido facilmente resolvi ligar ao Infarmed.
“É um dispositivo médico?” perguntam-me do outro lado da linha após uma breve exposição do tema – “não, não somos”.
“Mas também não é um medicamento ou cosmético, pois não?” – mãos na cabeça, respiro fundo antes de repetir “não, é um cobertor com peso que ajuda as pessoas a dormir melhor. Do vosso ponto de vista seremos uma espécie de sapato ortopédico, imagino eu, ou algo desse género”.
“Pois, não tenho a certeza de qual o colega a quem devo passá-lo… Pode enviar-me por favor um e–mail?”. O e–mail, para encurtar o texto, deveria ter toda a informação da empresa e do produto que conseguisse apresentar de forma a que alguém do Infarmed pudesse analisar a situação e decidir quem deveria ser a pessoa com quem poderíamos “falar”. Falar sobre a eventual possibilidade de nos aceitarem como fornecedor autorizado de farmácias e sobre que documentos teríamos de apresentar para isso. Pareceu-me demasiado complicado, demasiado burocrático e demasiado demorado, mas sobretudo pareceu-me estranho. Apesar de o Infarmed lidar sobretudo com medicamentos, isto não podia ser uma pergunta assim tão nova para eles ao ponto de não haver qualquer informação no site e de um responsável pelo atendimento não saber o que fazer. Ou será que podia? Decidi tentar confirmar antes de avançar mais com o processo.
Dá-se o caso de ter estudado economia e gestão, pelo que tenho alguns amigos em farmacêuticas – não confundir com farmácias. Liguei a um deles, expliquei-lhe tudo o que me tinham dito e fiz-lhe o que me pareceu a pergunta mais simples do mundo: “isto é mesmo assim”? Gentilmente, o Tomás (nome fictício, provavelmente ainda não tinham adivinhado) telefonou à diretora do departamento legal e ao fim de duas horas enviou-me um e-mail e ligou-me.
No e-mail vinha o Decreto-Lei n.º 75/2016 e os respetivos anexos.
Na chamada, a explicação: “O Infarmed não decide o que as farmácias podem vender, está definido por lei. E produtos de conforto fazem parte da lista. Está lá, no artigo 33º”.
Agradeci-lhe e, qual são Tomé, fui ler para crer. Está realmente lá, bem como outras coisas, tais como “suplementos alimentares e produtos de alimentação especial”.
Tenho agora duas chamadas estranhas para fazer: à Ana e ao Ricardo que, tenho a certeza, me deram indicações com a melhor das boas vontades. E que, tenho também a certeza, vão duvidar muito do que tenho para lhes dizer sobre o próprio sector e sobre os produtos que poderão agora, ao fim de 20 e 15 anos de carreira respetivamente, adicionar ao catálogo das suas farmácias.
Tal como a Ana e o Ricardo, muitos outros proprietários de farmácias continuarão a preferir não arriscar e a minimizar novas iniciativas por medo do regulador. Ora o regulador – para além do seu papel óbvio de regulação no respetivo sector de atividade – deveria ser também a primeira das entidades interessadas em fomentar a competitividade e a livre concorrência no sector. A bem dos consumidores que com isso iriam beneficiar de maior diversidade de produtos e a mais baixo preço. E este raciocínio vai muito além das farmácias. Há muitos mais “infarmeds” por aí…
Data: 20 de Setembro de 2022
Publicação: Observador