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Entre a lareira e a realidade: quando Henrique Raposo confunde médicos com sacerdotes

Opinião de Diogo Drummond Borges no Observador

Que credibilidade tem alguém que muda de opinião tão rapidamente, apenas para alinhar com narrativas convenientes?


Raposo argumenta que a “nova geração” de médicos rejeita o compromisso e demoniza as horas extraordinárias. Esta visão simplista desconhece os altos níveis de burnout e depressão entre os jovens médicos, bem documentados em estudos e testemunhos. Não se trata de preguiça, mas de condições de trabalho insustentáveis num sistema que não valoriza o descanso nem a formação adequada.

Raposo cita Eduardo Barroso, que apelidou médicos que recusam horas extras de “terroristas”. É fácil falar em dedicação ilimitada quando se está no topo de uma carreira consolidada ou quando se tem a segurança financeira de anos de prática bem remunerada. A maioria dos jovens médicos, no entanto, enfrenta precariedade laboral, remunerações baixas e um número esmagador de urgências que violam o mínimo de descanso necessário.

Aliás, há pouco mais de um ano, o próprio Raposo afirmava que “os médicos que continuam a fazer 200/300 horas extra sacrificam as suas famílias e pagam o preço com depressão, burnout e divórcios”. Agora, contradiz-se ao exigir dedicação cega e infindável. Que credibilidade tem alguém que muda de opinião tão rapidamente, apenas para alinhar com narrativas convenientes?

Há uma distinção fundamental entre as horas extraordinárias realizadas em contextos de urgência e as horas trabalhadas muito além do horário regular sem remuneração. Estas últimas, são fruto de uma gestão hospitalar inadequada e de um sistema de saúde que sobrecarrega os médicos ao ponto de exaustão. O compromisso de um médico não pode ser confundido com exploração. E não são as horas extraordinárias (que contabilizam as que são efetuadas apenas no Serviço de Urgência) muitas vezes em equipas desfalcadas, sem a necessária atenção e tempo para o ensino onde se formam melhores médicos.

O Serviço Nacional de Saúde tem sido vítima de cortes, sub-financiamentos e precariedade contratual, o que impacta diretamente os cuidados de saúde e a qualidade de vida dos profissionais. Enquanto o sistema não oferecer condições justas e dignas, não podemos esperar que os médicos aceitem sacrifícios ilimitados. Tratar os médicos como recursos inesgotáveis não só é injusto, como coloca em risco a vida dos próprios pacientes.

Henrique Raposo, ao escrever a sua crónica junto à lareira, desligado da realidade do terreno, não tem legitimidade para estabelecer supostos “contratos sociais” para os médicos. O problema não é a falta de compromisso dos médicos, mas sim a incapacidade do sistema de saúde de garantir condições adequadas de trabalho.

Exigir sacrifícios sobre-humanos sem oferecer condições humanas é não só irresponsável, mas também perigoso. Talvez Raposo possa gastar mais tempo a ouvir quem está no terreno e menos tempo a impor moralismos de uma posição confortável e distante da realidade. Talvez se fizesse um turno de 24 horas seguidas no serviço de urgência, não lhe sobrasse tanto tempo para satisfazer determinadas agendas.


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Entre a lareira e a realidade: quando Henrique Raposo confunde médicos com sacerdotes
Diogo Drummond Borges 12 de fevereiro de 2025
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