Que credibilidade tem alguém que muda de opinião tão rapidamente, apenas para alinhar com narrativas convenientes?
Raposo argumenta que a “nova geração” de médicos rejeita o compromisso e demoniza as horas extraordinárias. Esta visão simplista desconhece os altos níveis de burnout e depressão entre os jovens médicos, bem documentados em estudos e testemunhos. Não se trata de preguiça, mas de condições de trabalho insustentáveis num sistema que não valoriza o descanso nem a formação adequada.
Raposo cita Eduardo Barroso, que apelidou médicos que recusam horas extras de “terroristas”. É fácil falar em dedicação ilimitada quando se está no topo de uma carreira consolidada ou quando se tem a segurança financeira de anos de prática bem remunerada. A maioria dos jovens médicos, no entanto, enfrenta precariedade laboral, remunerações baixas e um número esmagador de urgências que violam o mínimo de descanso necessário.
Aliás, há pouco mais de um ano, o próprio Raposo afirmava que “os médicos que continuam a fazer 200/300 horas extra sacrificam as suas famílias e pagam o preço com depressão, burnout e divórcios”. Agora, contradiz-se ao exigir dedicação cega e infindável. Que credibilidade tem alguém que muda de opinião tão rapidamente, apenas para alinhar com narrativas convenientes?
Há uma distinção fundamental entre as horas extraordinárias realizadas em contextos de urgência e as horas trabalhadas muito além do horário regular sem remuneração. Estas últimas, são fruto de uma gestão hospitalar inadequada e de um sistema de saúde que sobrecarrega os médicos ao ponto de exaustão. O compromisso de um médico não pode ser confundido com exploração. E não são as horas extraordinárias (que contabilizam as que são efetuadas apenas no Serviço de Urgência) muitas vezes em equipas desfalcadas, sem a necessária atenção e tempo para o ensino onde se formam melhores médicos.
O Serviço Nacional de Saúde tem sido vítima de cortes, sub-financiamentos e precariedade contratual, o que impacta diretamente os cuidados de saúde e a qualidade de vida dos profissionais. Enquanto o sistema não oferecer condições justas e dignas, não podemos esperar que os médicos aceitem sacrifícios ilimitados. Tratar os médicos como recursos inesgotáveis não só é injusto, como coloca em risco a vida dos próprios pacientes.
Henrique Raposo, ao escrever a sua crónica junto à lareira, desligado da realidade do terreno, não tem legitimidade para estabelecer supostos “contratos sociais” para os médicos. O problema não é a falta de compromisso dos médicos, mas sim a incapacidade do sistema de saúde de garantir condições adequadas de trabalho.
Exigir sacrifícios sobre-humanos sem oferecer condições humanas é não só irresponsável, mas também perigoso. Talvez Raposo possa gastar mais tempo a ouvir quem está no terreno e menos tempo a impor moralismos de uma posição confortável e distante da realidade. Talvez se fizesse um turno de 24 horas seguidas no serviço de urgência, não lhe sobrasse tanto tempo para satisfazer determinadas agendas.