É tempo de a cultura sair mais à rua e ir ao encontro dos portugueses. Que faça a diferença pela sua qualidade e verdadeira missão e que não dependa tanto do lugar onde é apresentada para vingar.
Falar sobre descentralização, valorização e promoção da Cultura no atual ambiente político e económico do país pode, à primeira vista, parecer um luxo. Só que não é um luxo, é um direito dos cidadãos e devemos lutar por ele tanto quanto lutamos por todos os outros direitos básicos.
Quando os jovens fogem do nosso país ao encontro de uma vida melhor porque percebem que aqui o seu talento de nada lhes vale; quando os salários de tão consistentemente baixos já são insuficientes para pagar as contas básicas de habitação, alimentação e saúde; quando não há lado nenhum para onde olhemos que não esteja a custar mais e que parte significativa desse custo adicional seja um qualquer e absurdo imposto com nome sempre duvidoso, deparamo-nos com um horizonte em que a cor política predominante desde há décadas teima em não evoluir, e já nem a Europa e os seus 16,6 mil milhões de euros do PRR nos salvam de ver o país definhar ao invés de arrancar, por via do mérito e do trabalho de cada um.
Talvez seja o momento de pararmos, respiramos, arregaçarmos as mangas e nos agarrarmos ao que ninguém nos pode tirar, arrendar, vender, e nem sequer ocupar: a nossa identidade. Identidade, essa coisa tão única que é ser português, que só um verdadeiro português pode representar, que tem valor imaterial, mas que também contém aquele valor que às vezes teimamos em não assumir porque um dia nos disseram que parece mal, o malfadado valor material.
Se numa perspetiva mais criativa e alargada olharmos para tudo o que mexe com a nossa identidade, vemos um mar de oportunidades à espreita que todos nós podemos e devemos defender, valorizar e promover com retorno de valor económico que tanta falta nos faz.
Tratemos primeiro bem de nós em Portugal para depois tratarmos dos “outros”, arrumando a casa, valorizando o que é nosso, e depois exportarmos esse valor. Temos de vender primeiro Portugal ao nosso país, ao invés de vender primeiro a China, Índia, Dubai, Espanha, França, Alemanha, seja numa peça cerâmica ou na arquitetura.
Sou adepta fervorosa e praticante da globalização e do encontro e intercâmbio de culturas, experiências e produtos, mas queiramos primeiro para Portugal o que valoriza e melhora a nossa vivência e a experiência de quem nos visita sem deixarmos de ser o que somos, portugueses. Só nestes 92.152Km2 de território poderemos ser portugueses em pleno, garantamos que assim é.
Por outro lado, se é verdade que precisamos do passado para entender o presente e o futuro, não nos deixemos ficar presos à história se ela hipotecar a capacidade de sonhar com esse futuro e de fazermos melhor do que fizemos até agora.
Falemos então do que também é da dimensão cultural e que nos une a todos: de Território, de Natureza, de Mar, de Gastronomia, de Arte, de Design, de Património, até de Indústria, e no meio de tudo isto, falemos também de Legado.
Falemos de juventude e de senioridade, de emprego e de voluntariado. Falemos de empreendedores declarados e dos que toda a vida o foram e nem sabem que o são. Falemos de artesãos e gestores. Juntemos os inconformados e os resignados. Por fim, desenhemos uma estratégia com criatividade, sentido de interligação e missão, e avancemos.
Passemos a uma abordagem de manutenção dos conteúdos de qualidade meritória apostando na simplificação da forma, com maior capacidade de mobilização rápida e por isso que mais ativamente promova o encontro diário das mais variadas expressões culturais e artísticas com os cidadãos, onde eles estão, nas suas cidades e freguesias.
Atualmente a cultura é para a maioria de nós vivida a espaços largos. Por falta de tempo, porque fica para depois de tudo o resto, por desinteresse, por falta de oportunidade, por incapacidade financeira, mas creio que também pelo desencontro da própria cultura face ao que é o dia a dia dos cidadãos. Essa vida de trabalho que nos rouba o tempo quase todo e que no caso português nem nos tem trazido os louros que merecemos.
É tempo de a cultura sair mais à rua e ir ao encontro dos portugueses, tempo para que deixe de ser estática ou estatal para ser móvel e presente no dia a dia de todos nós. Que seja nossa de verdade. Que dê prioridade aos temas do futuro e não aos do passado. Que faça a diferença pela sua qualidade e verdadeira missão e que não dependa tanto do lugar onde é apresentada para vingar.
Façamos exposições nas praças e nos jardins destratados, concertos e teatros nos coretos abandonados, abramos as portas e janelas do património encerrado, cantemos e toquemos nas ruas sujas e cafés dos bairros. Alegremos assim a vida dos cidadãos e de quem nos visita e passemos conhecimento a quem por qualquer motivo não se encontra com ele.
Lutemos por uma cultura de qualidade, mais móvel e acessível e talvez estejamos mais próximos da plenitude da democracia cultural.
Porque a cultura deve chegar-nos leve e ter o efeito de um copo de água fresca num dia de muito calor. Deve ser vivida todos os dias e inspirar o nosso futuro coletivo mais do que o nosso futuro individual.
Se assim for serve-nos mais. Muito mais.
Publicado no Observador