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Calar a noite em Lisboa

Opinião de Manuel J. Guerreiro no Jornal O DIABO
No início de Fevereiro a Câmara Municipal de Lisboa (CML), aprovou novas medidas, visando garantir um maior equilíbrio entre o direito ao descanso e a actividade económica nocturna, que obrigam, para tanto, à alteração do Regulamento de Horários de Funcionamento dos Estabelecimentos de Venda ao Público e de Prestação de Serviços, em vigor no concelho desde 2016. 

Das várias alterações propostas, contam-se a proibição de venda de bebidas alcoólicas para o exterior (esplanadas incluídas) a partir da uma hora da madrugada, naquelas que são, por excelência — e por toda a gente reconhecidas — as zonas de diversão nocturna da capital. Designadamente, Santos, Cais do Sodré, Bica e Bairro Alto.

Outras das medidas previstas por esta alteração regulamentar municipal são, por um lado, a obrigatoriedade de instalação de um limitador de som, quer por esplanadas com amplificação sonora (música ao vivo ou gravada), quer por estabelecimentos com televisão. E, por outro, uma diferenciação dos horários de funcionamento das esplanadas (que terão de encerrar impreterivelmente às 24 horas) mesmo que os estabelecimentos comerciais correspondentes, de que façam parte, tenham um limite horário diferente, podendo operar até mais tarde.

É também criada, por esta alteração ao regulamento, uma zona de restrição de horário até às 23 horas, exclusiva para os estabelecimentos situados na Rua de São Paulo que não cumpram os requisitos urbanísticos exigíveis à sua actividade económica, como a insonorização do espaço interior.

Isto é, além da necessária autorização de utilização, da licença de obras — nos casos em que tal se verifique — que impliquem a comunicação à Câmara Municipal —, das licenças para ocupação do espaço público, do cumprimento de todas as regras de acessibilidade a que estão obrigados quando o espaço tenha uma área superior a 150 m2, das licenças para música ao vivo e reprodução de videogramas e fonogramas. Sem esquecer as muitas e variadas obrigações fiscais, ao Estado e ao município, as obrigações relativas à segurança social. E, ainda, das demais despesas, entre outras, com software obrigatório e respectivo equipamento informático, com o pagamento mensal da renda ou de empréstimo, dos serviços de seguros,  contabilidade, apoio jurídico e dos vencimentos dos colaboradores. Estes empresários, criadores de emprego, vêem as suas legítimas expectativas de obtenção de lucro esmagadas pelas, cada vez maiores, limitações impostas pelas autarquias.

Podemos mesmo concluir que é preciso, de facto, coragem para assumir um papel profissional na actividade económica nocturna, cada vez menos atractiva e cada vez mais diabolizada por alguns sectores da sociedade que pretendem impor uma concepção de diversão alicerçada no silêncio e no chá! 

Mas será que as medidas propostas vão ter alguma eficácia quanto àquilo que visam almejar?

É comum encontrarmos, pela madrugada fora, em qualquer sítio da cidade, primordialmente, nas principais zonas de diversão nocturna, ajuntamentos que fazem a sua festa na rua, com bebidas previamente compradas em supermercados, durante o dia, trazendo colunas de som amplificadas, com tecnologia “Bluetooth” (ligação por conectividade sem fios), sem qualquer limitador, capazes de emitir decibéis que, obviamente, não respeitam os limites legais do ruído durante a noite. Pelo que, não será com toda a certeza, a redução dos horários de funcionamento dos estabelecimentos nocturnos que irá impedir as pessoas de circular livremente e modificar comportamentos noctívagos. 

Uma cidade como Lisboa não pode deixar de ter cafés, restaurantes, bares e discotecas abertos pela noite adentro, com horários de funcionamento diferentes consoante as tipologias dos respectivos espaços comerciais, dando às pessoas a possibilidade de se divertir e de socializar umas com as outras — como acontece em todas as cidades da Europa e do mundo livre e democrático —, mais quando, em Lisboa, a maior parte destes locais de diversão nocturna se encontra concentrada em determinadas zonas onde há décadas funcionam.

Se alguma coisa verdadeiramente nefasta para a qualidade da democracia portuguesa se poderá associar ao período da pandemia, que ainda persiste como genuíno desejo de muita gente, é a reposição de todas aquelas restrições de direitos, liberdades e garantias que forçadamente vivemos durante quase dois anos. Designadamente as limitações à liberdade de movimentos, de circulação e de diversão, através de uma política de forte redução de horários e excessivo condicionamento do funcionamento de certas atividades comerciais. Alguns, até, gostariam que fossem encerrados definitivamente, proibida a actividade económica em causa no presente e para o futuro.

Tal como imposto um limite horário à própria compra e venda de certos produtos, como também ocorreu na fase do progressivo desconfinamento pandémico da Covid-19, por exemplo com as bebidas alcoólicas. Lembro-me bem de estar nas filas para a caixa nos supermercados, quase a bater as oito horas da noite, hora limite para poder comprar uma simples garrafa de vinho para o jantar.

Pois bem, estas novas medidas restritivas, aprovadas pelo executivo de Carlos Moedas, que constarão do novo regulamento a aprovar por deliberação da Assembleia Municipal de Lisboa, aplicar-se-á a todas as empresas do sector por ele abrangidas, provocando, necessariamente, impacto na facturação pela redução do horário e demais limitações impostas na venda de bebidas, com consequências económicas e financeiras, desde logo, para os trabalhadores, que em muitos casos ficarão desempregados por extinção dos respectivos postos de trabalho, quer para a própria atividade individual de cada uma das micro e pequenas empresas deste sector altamente fustigado durante aquele período de muito má memória. 

Enfim, quer para a cidade de Lisboa como um todo, que assim verá perder o interesse de muitos que hoje a procuram para visitar, precisamente, pela oferta em termos de diversão nocturna, com qualidade reconhecida internacionalmente. Nomeadamente os mais jovens. O mesmo se dirá dos jovens portugueses — da cidade, da área metropolitana e oriundos de todos os cantos do país — que cá vivem e estudam. Os tais que tanto queremos evitar que se vão embora mal terminem as suas licenciaturas e a quem agora dizemos, desculpem lá mas têm de ir para casa mais cedo porque estão a incomodar os moradores do Bairro Alto e do Cais do Sodré.

Aliás, faz todo o sentido que, nos dias de hoje, alguém resolva comprar uma casa no Bairro Alto, para morar, e ter uma inexplicável expectativa de vir a conseguir modificar, restringir ou mesmo acabar com toda uma actividade económica, característica daquele sítio, que já lá existia muitíssimo antes da decisão que resolveu tomar. Para esse efeito, não deixando de pressionar, pela chantagem do seu voto, o poder político imediatamente mais próximo, i.e., as Juntas de Freguesia que, nalguns casos, não só cedem à referida chantagem lançada pelos fregueses eleitores, como, ainda, os respectivos autarcas assumem tal ideia como sua doutrina.         

Admirável!       

Publicado no Jornal O DIABO
Calar a noite em Lisboa
Manuel J. Guerreiro 6 de maio de 2024
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